☼ HISTÓRIAS DE VIDA
Histórias da Vila, histórias de vida
Cantigas, lendas, conflitos e transformações sociais marcam a trajetória de um pescador e mestre de cultura popular da comunidade de Ponta Negra
Pedro de Lima, pescador e mestre de cultura popular. [Foto: Joanisa Prates] |
joanisaprates@gmail.com
Antes de ser conhecida internacionalmente como principal ponto turístico da capital do Rio Grande do Norte, a praia de Ponta Negra abrigava um conglomerado agrícola familiar e aldeia de pesca artesanal. O núcleo que originou esse bairro ocupava o extremo sul da praia, local onde hoje é a Vila de Ponta Negra. Quem mora ou vem a Natal, e visita o Morro do Careca, não imagina quanta história o povo desse lugar tem para contar.
Pedro Carlos de Lima, 62 anos, cabelos grisalhos e sorriso no rosto, é pescador e mestre de cultura popular. É proprietário de uma casa humilde na Vila de Ponta Negra, num terreno que abriga outras pequenas residências de alvenaria onde moram alguns familiares. Para conversar ele prefere sentar à sombra de uma mangabeira no quintal, pois está reformando a casa.
Nascido e criado na Vila, ele aprendeu a brincar e cantar as cantigas do Boi de Reis, Bambelô e Congos de Calçola ainda criança, com seu pai e os mestres da comunidade. “Eu aprendi com Zé de Teresa. Ele cantando e eu só pegando as cantigas dele. Aí ele disse: 'Pedro, vamos fazer o seguinte: antes de eu morrer, eu vou lhe ensinar as cantigas'. Aprendi tudo. Não erro uma”.
Após cantarolar a primeira cantiga que aprendeu aos 17 anos, Seu Pedro conta que mesmo sem saber ler nem escrever, hoje é mestre de dois grupos de cultura popular da Vila: o Bambelô Maçariquinho da Praia e o Boi de Reis Pintadinho. “Eu cheguei a mestre porque fiquei prestando atenção nas cantigas”.
Apesar de poucas facilidades, pois naquela época o acesso ao centro da cidade era complicado, Seu Pedro teve uma infância muito feliz. Naquele tempo a diversão era descer o morro de tábua, correr atrás da galinha dos ovos de ouro enquanto o morro estrondava, e fugir do lobisomem. “O morro (do Careca), naquela época, era liberado. Ele começava a estrondar. Do outro lado tinha uma galinhazinha de ouro. Ela tinha mais ou menos uns dez pintinhos. A gente corria atrás pra pegar, mas num pegava. Ela se escondia. Quando a gente chegava perto, desaparecia e o morro parava”. Além da galinha de ouro outra lenda que não sai da boca do povo é a do lobisomem. Seu Pedro conta que existiam vários e que, inclusive, um deles era bem familiar. “Um tio meu virava lobisomem. Era Zé Nani”.
Pedro e sua família viviam da pesca e da agricultura. As mulheres colhiam frutas e os homens pescavam. As crianças brincavam, mas também ajudavam os pais nas casas de farinha, no roçado e no mar. “Graças a Deus, eu era muito feliz na Vila”. Mas nem sempre foi assim. Nos anos 1960 a comunidade passou por grandes transformações socioeconômicas, quando as terras agricultáveis foram expropriadas.
Nessa época, a Vila foi palco de uma luta pelas terras, quando Fernando Pedroza – irmão do então governador do RN, Silvio Pedroza, decidiu cercar as “terras de ninguém” e colocá-las à venda. Seu Pedro de Lima foi protagonista dessa batalha, ao lado da família. “Papai trabalhou 45 anos com Fernando Pedroza e não ganhou nem um cibazol dele, acredita? Morreu e não ganhou nada”. Ele conta que na tentativa de salvar suas terras, as mulheres se juntavam para derrubar as cercas, que no dia seguinte eram reerguidas pelos capangas de Pedroza.
Pedro, que era menor de idade, mas muito valente, juntou-se com o pai e mais cem homens armados para enfrentar Fernando Pedroza, que aportaria na Vila escoltado pela polícia. “Assim que ele bateu lá, eu atirei de baladeira. Eu e meu irmão. Aí cercaram a gente. Papai me deu as facas. Daqui a pouco o soldado chegou e disse: 'E essas facas? Entrega as facas'. Eu respondi: 'Vocês querem que eu entregue as facas ou querem que eu fique com as facas? Ele não pode bater em mim porque sou menor'. Fiquei com as facas”, recorda exaltado.
Após muitas lutas a comunidade foi obrigada a ceder, perdeu todo o roçado, as mulheres não tinham mais onde colher suas frutas, e as principais atividades econômicas passaram a ser a pesca, o trabalho assalariado e o comércio. “Aonde é que a gente vai plantar agora? Em canto nenhum. Não tem mais localidade pra gente fazer nada. Ou vai trabalhar em construção, ou morre de fome”.
Apesar da pesca, que sempre foi uma fonte de renda e alimentação, o povo da Vila não tinha mais o alimento da terra. “Quando a gente chegava da pescaria, ia trabalhar. A gente tinha que procurar outra coisa. O ‘cumê’ que a gente levava pra casa era um punhado de farinha com açúcar”, conta Pedro.
Hoje a Vila de Ponta Negra sofre as consequências dessa brusca transformação social, reflexo da ganância e poder do homem que deu margem ao crescimento desordenado do bairro, ao tráfico e consumo de drogas, ao turismo sexual, violência e prostituição. “A vida aqui era boa, agora não é mais, não. Droga tem que só aqui em Ponta Negra. Aí começou a bandidagem safada”.