☼ A 2ª GUERRA E PONTA NEGRA

Com o advento da Segunda Guerra Mundial, em 1941, Natal passa a ser base aliada estratégica por ser a cidade da América mais próxima da África e da Europa. A cidade se transformou e a ocupação dos soldados norte-americanos trouxe consequências sociais, econômicas e culturais. Só para se ter uma ideia da situação, imagine Natal nos anos 1940, com cerca de 60 mil habitantes, recebendo mais de 20 mil soldados norte-americanos durante a Segunda Guerra? 

O estilo de vida dos natalenses foi influenciado diretamente pelos costumes norte-americanos. Dizem, inclusive, que foi por aqui que a máquina de chopp, o chiclete e o fliperama desembarcaram no Brasil. E em Ponta Negra não foi diferente: a chegada dos yankees provocou grandes mudanças na história do povoado e algumas manias, como jogar baralho apostando dinheiro, foram combatidas pela polícia e pela Igreja Católica - representada pelo pároco da comunidade Padre Eugênio Sales, hoje arcebispo emérito do Rio de Janeiro.

O acesso a comunidade por estradas, que antes da Guerra não existiam, também sofreu modificações. A estrada de Ponta Negra foi aberta, e como era de se esperar, a área ganhou valor de mercadoria, e várias famílias de Natal se apropriaram de grandes lotes de terra na beira da praia para construir suas casas de veraneio. A princípio, os moradores do povoado viam essa movimentação com bons olhos porque eles começaram a ter mais opções de trabalho (trabalhos domésticos, construção civil, artesanatos, etc.), no entanto, e essa apropriação serviu de alerta para os moradores quando Fernando Perdroza, buscando uma desculpa para começar uma negociação com os moradores da Vila, começou a mostrar essa apropriação como uma ameaça às terras agricultáveis.

Lois Garda escutou depoimentos reveladores durante sua pesquisa:

“Bom, primeiro eu estava interessada nas barracas e nas mulheres. Mas quando eu cheguei aqui, eu vi que realmente a história da Vila é a história da maioria do povo que morava no interior do Brasil que foi expulso para cidade. A diferença é que aqui eles não foram expulsos, a cidade mudou para cá. Então eles conseguiram manter a família e manter os laços de amizade de família e etc., que uma pessoa retirante do interior, normalmente não tem esses vínculos tão grandes de famílias assistentes. Eu acho que isso ajudou ao povo que originalmente morava na Vila a sair melhor do que a maioria das pessoas que tiveram esse percurso. E durante esse tempo eu fui vendo e soube que teve uma briga pelas terras em Ponta Negra e vi que essa era a história.” (O trecho é um depoimento de Lois durante entrevista concedida à equipe do Rádio Documentário Vozes da Vila, em setembro/2010.)

O roçado que brotou foguete

A antropóloga Lois Martin Garda chegou para morar na Vila em 1978 com sua família e foi uma das primeiras estrangeiras a fixar em Ponta Negra. Em seu estudo, no Capítulo 3 A perda das terras de Ponta Negra e suas representações, ela mostra em sua tese, quatro versões distintas para a disputa que marcou profundamente o rumo do povoado de Ponta Negra: uma foi do beneficiário da expropriação, Fernando Pedroza e as outras três foram de moradores da Vila que participaram ativamente da disputa.

Segundo o depoimento de um dos moradores, o avô de Fernando Pedroza tinha uma relação de compadrio com muitos moradores de Ponta Negra e comprava terras nesse local só para ajudar os compadres, contudo, no ato da “compra” ele fazia um “recibozinho” mas nunca tentou afirmar seu direito sobre as terras. 

Por volta de 1949, seu neto Fernando, chegou a Vila com esses recibos e uma garrafa de cachaça Olho d’Água, entrou na bodega e juntou os homens mais velhos para uma conversa. Conversou muito sobre a bondade de seu avô e falou sobre o perigo dos “tubarões da boca grande” (assim ele se referia aos veranistas) que estavam loteando a beira da praia. 

Após muita conversa e cachaça convenceu-os de que precisavam da proteção de uma família poderosa e que deveriam assinar um documento provando não só a validez de seus recibos, como também seu direito sobre as terras que o povo de Ponta Negra trabalhava. Quando os mais jovens souberam do acontecido os ares na comunidade ficaram tenso e em 1955 - final do mandato de governador do Estado de Sílvio Pedroza (irmão de Fernando) – começaram a contestar seu direito a terra. Em 1957, Fernando fez a medição das terras e deu ordem aos capangas para expulsar qualquer pessoa que entrasse no mato de Ponta Negra. Crianças, mulheres e os homens que trabalhavam na roça ou faziam carvão foram agredidos. Foi nesse ano, também, que ele doou a área da Vila (cerca de 65 há) à Arquidiocese de Natal.

Inconformados com a não legitimidade da posse de Fernando, os moradores se organizavam e tiravam as cercas. Garda conta um episódio muito interessante: um grupo de moradores saiu armado com facas e foice, para combater pelos roçados, passou pelo carro do Padre Eugênio Salles que tentou dissuadi-los e não conseguindo deu meia volta e foi chamar a polícia. Nessa época, a preocupação da comunidade se resumia em ter acesso ao mar e a garantia de espaço para o roçado. Diante da pressão e da “conversa bonita”, alguns moradores ficaram acuados e fizeram um acordo com Pedroza para não perder tudo. Outros continuaram a lutar por seu direito de trabalhar nas terras de Ponta Negra. O jornal Tribuna do norte noticiou a disputa no dia 30 de abril de 1957:

“Pescadores de Ponta Negra visitaram a redação da Tribuna do Norte para reclamar a passagem das escrituras que tinham no 1º Cartório ao nome de Fernando Pedroza... Reclamavam que não podiam sobreviver no inverno sem a roça...” (Tribuna do Norte: 30/04/1957, pag. 4, APUD GARDA.)

O movimento continuou recebendo repressão por parte da Igreja, da Polícia e do Mercado imobiliário e alguns anos depois, com o Golpe Militar de 1964, a Aeronáutica deu o “xeque-mate” da disputa. Fernando Pedroza recebeu uma convocação urgente do Ministro da Aeronáutica e foi informado que Ponta Negra tinha sido escolhida, por oferecer melhores condições, para receber a construção de um Centro de Lançamento de Foguetes financiado pela NASA e que deveria ceder parte de “suas” terras. Sem levar em consideração o histórico das terras a Aeronáutica, em 1965, construiu nessas terras a primeira base de lançamentos de foguetes do Brasil, conhecida como Barreira do Inferno. Os moradores não puderam mais resistir às forças armadas federais e abandonaram definitivamente os roçados.

Segundo Lois Garda, Pedroza nunca conseguiu consolidar a posse dessas terras, mas o fato é que, depois desse episódio, os moradores da Vila nunca mais conseguiram restabelecer o equilíbrio econômico e social. Maria Helena Correia dos Prazeres, nativa com 67 anos de idade conta que seu pai adoeceu após ter perdido o roçado. As mulheres não podiam mais pegar frutas no “mato” e a maioria delas foi cuidar de barracas (vendiam comida e bebida) na beira da praia, aproveitando o aumento no fluxo de freqüentadores e os homens foram vender sua mão-de-obra no centro da cidade ou na construção civil. Vale salientar que a maioria dessas pessoas só tinha concluído os primeiros anos de escola.

Lois Garda conclui o Capítulo 3 de sua tese dizendo que é muito difícil precisar com base nos dados colhidos, o que realmente aconteceu durante os longos anos de disputa, mas que não podemos ignorar a violência dessa expropriação ou das mudanças socioeconômicas que ela desencadeou.

Assim a Vila de Ponta Negra passou de reduto agrícola à periferia urbana e atualmente enfrenta graves problemas econômicos e sociais, além do preconceito social visível nas páginas dos jornais da cidade, que ignora os mais de 300 anos de histórias e tradições do núcleo que povoou um dos bairros mais importantes para a atividade turística em Natal-RN.

Continua....

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