☼ VOZES MULTIFACETADAS
Radiodocumentário mergulha no universo cultural da Vila de Ponta Negra para compor um relato humano e poético
Das histórias serem faladas e contadas a todo instante, na maioria das vezes quando olhamos para trás percebemos que não há registros dessas vozes que musicam o cotidiano entre conversas fi adas, sérias e mitos, que caracterizam a cultura de pessoas sobreviventes ao império da Modernidade. Foi com objetivo de registrar e contar para a própria Natal e para o Brasil inteiro a história da Vila de Ponta Negra, que foi idealizado o radiodocumentário Vozes da Vila.
O projeto foi o único do Rio Grande do Norte a ser selecionado no 1° Concurso de Fomento à Produção de Programas Radiofônicos/Prêmio Roquette-Pinto, realizado pela Associação de Rádios Públicas do Brasil (Arpub), com patrocínio da Petrobras e do Ministério da Cultural (MinC), recebendo o prêmio de R$ 20 mil para produção. Coordenado por Joanisa Prates, Ana Ferreira e Yuno Silva, o Vozes da Vila foi apresentado à Arpub pela Rádio Universitária FM, via Fundação Norte Rio Grandense de Pesquisa e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Funpec). “Fizemos o projeto e apresentamos à superintendente Josimey Costa, que gostou da proposta e concordou em inscrevê-lo no edital”, explicou a graduanda em Comunicação Social, Ana Ferreira.
O rádiodocumentário terá 12 episódios, de 30 minutos cada que serão veiculados pela FMU e por diversas rádios do país associadas à Arpub. Cada capítulo terá um tema diferente, retratando peculiaridades das histórias dos pescadores, das rendeiras, das lendas da Vila de Ponta Negra, dos grupos de dança e também da religiosidade, da culinária e da especulação imobiliária que toma conta da área. Os 12 episódios foram produzidos em 75 dias, e contaram com a participação de 40 entrevistados. A expectativa é de que à partir de novembro eles sejam veiculado nas rádios.
A decisão por contar histórias sobre a cultura da Vila de Ponta Negra é resultado do interesse dos três idealizadores do projeto que também são moradores do bairro. Segundo Ana Ferreira, o objetivo é valorizar a memória e a oralidade de um povo, produzindo um documento sonoro da história de um bairro. “Todo mundo sabe que ele existe, mas e a história dele. Cadê a história dele?”, ressaltou Ana, além de destacar que tem aprendido muito com as histórias que ouviu. “Não é justo que a Vila que é mais antiga que o Conjunto de Ponta Negra seja o primo pobre. A vila não é só violência e drogas”, finalizou.
O radiodocumentário mostrará a realidade do bairro, contando as histórias da forma mais natural possível. Para isso, os textos foram escritos em forma de cordel e a locução será feita pelo ator e professor Rodrigo Bico. O cordelista é o poeta Emmanoel Iohanan, e as músicas são da autoria de Carlos Zens. “Quisemos fazer da forma mais poética possível. O locutor servirá como guia turístico ao ouvinte”, disse Ana.
Ainda, segundo ela, o uso do Cordel como linguagem para os programas tem como objetivo caracterizar o Nordeste à partir dessa arte, que é uma linguagem que facilita o entendimento ao ouvinte, permitindo que ele
sinta da forma mais fiel possível o ambiente. “Gravamos entrevistas em que o som produzido pelos bilros das rendeiras, o entrar e sair de pessoas no ambiente de trabalho delas são fundamentais para a fidelidade da cena”, explicou Ana.
Histórias como a do senhor Manuel Manuelito que afirmou ter sido perseguido por um lobisomem ganham destaque e gosto popular. “Muita gente viu o lobisomem. Eles sabem até a reza que faz o homem virar lobisomem”, finalizou Ana. O grupo pretende ainda dar cópias dos episódios para as escolas de Natal, Bibliotecas e Instituto Histórico e Geográfico.
Maria Helena, afamada rendeira de uma estirpe de artesãs
Maria Helena Correia, 67, é professora aposentada e desde os 7 anos de idade faz renda. “Minha mãe também era rendeira. A gente fazia sentada no chão das calçadas, passava o dia todo nisso”, relembra Maria Helena. Dona Maria Helena afirmou que naquela época muitas mulheres iam a pé até a avenida Rio Branco, no Centro da Cidade, onde havia um mercado público para vender as rendas e frutas.
Maria Helena participou de cinco episódios do projeto. Mesmo exercendo a profissão de professora, ela nunca pensou em largar os grupos das rendeiras e pastoril, que faz parte. “Eu morei aqui numa época em que não tinha água, nem luz. Era uma época mais feliz, em que a gente podia correr que não seria atropelada. Toda a comunidade era rendeira. Eu sinto falta de um ar mas puro, de inocência. A gente nunca pensou em ficar assim com tantos prédios”, explicou.
Ela relembrou ainda a época em que fez o curso de Treinamento de Professores Leigos, em 1964, no Atheneu, época em que o pau de arara de João Virgulino era o único transporte e só fazia o percurso três vezes ao dia. Nas vezes em que perdeu a viagem dona Helena teve que pegar ônibus até as proximidades do Estádio Machadão onde, à época, havia uma corrente que demarcava o final do território da cidade. À partir de lá, ela tinha que fazer a pé o percurso até sua casa na Vila.
Para Maria Helena, a comunidade da Vila cresceu, o que gera muito emprego para as jovens. “Hoje em dia elas que não querem perder a tarde inteira confeccionando uma peça para vender por R$ 30, quando elas podem trabalhar num hotel desses e ter um salário no final do mês. Temos novos costumes, novos hábitos de vida. Convivemos com pessoas diferentes, de línguas diferentes”, finalizou.